quarta-feira, 21 de julho de 2010

O que é razão afinal?

Antes de nos aprofundarmos no tema central, convém discutirmos o conceito de razão que será aplicado em diversos momentos ao longo deste livro. Não pretendo, para isso, elaborar nenhuma grande construção filosófica, nem construir complexos silogismos, ou propor exagerados processos de abstração que acabem por fugir da realidade. Basta que compreendamos com clareza o que diz respeito à razão e o que se opõe a ela, além de sua importância.

É uma herança do Iluminismo que nós acreditemos na racionalidade do homem. Sem dúvida o ser humano possui o dom da razão, mas isso não é o mesmo que ter seu comportamento guiado por ela. Não é preciso ser um especialista em Freud para perceber que muito de quem nós somos se encontra em nosso subconsciente, longe do alcance da razão. Nossa personalidade se forma em sua maior parte pela influência de fatores externos a nós. A cultura da sociedade em que você vive, os livros que lê, os programas de TV que assiste, os costumes de sua família, os seus amigos, a sua religião. Estes e muitos outros elementos são fatores que se encontram completa ou parcialmente longe do alcance de nosso julgamento racional, estando fora de nosso pleno controle. A própria vontade pessoal que o indivíduo pode usar para selecionar as influências que deseja sofrer de seu meio social também está sujeita a tais fatores externos. Você só pode escolher ser católico porque algo em sua experiência de vida o fez simpatizar-se com o catolicismo. Da mesma forma, você só escolheu ler este livro porque algo em sua formação o inclinou para tanto; se você tivesse nascido em uma família muito religiosa, as chances de estar lendo estas palavras agora seriam muito menores, e se é este o caso, continua havendo algum outro fator externo a você que tenha guiado as suas mãos até estas páginas. A nossa percepção da realidade também é algo relativo, assim o que é coerente para uma pessoa, não necessariamente é para outra. Mostre o desenho de um cubo a alguma tribo africana que não esteja habituada a representar figuras em três dimensões e o que eles verão será a imagem bidimensional chapada no papel, como dois quadrados parcialmente sobrepostos ligados pelos vértices. Infelizmente, nós temos um controle muito menor sobre quem nós somos do que gostamos de pensar. No entanto, isso não significa que nós tenhamos que cair em uma irracionalidade fatalista, a ponto de achar que a razão é uma mera ilusão. Nada nos impede de tomar as rédeas do pouco de controle que nós podemos ter e usá-lo ao nosso favor.

O próprio preconceito, um fenômeno universal, é uma expressão da irracionalidade. Sendo caracterizado como um julgamento precipitado e falho, baseado em idéias que não são sustentadas pelo que se observa na realidade, pode-se afirmar que o preconceito não é racional. Portanto, conclusões precisam basear-se em fundamentos honestos para serem fruto da razão. Vemos então, que o conceito que buscamos aqui compreender está fundamentalmente ligado ao pressuposto em que se baseia, tanto quanto à conclusão que é capaz de produzir. Isto significa que a razão age como um elo que une a hipótese proposta ao resultado que dela se extrai, buscando sempre fazê-lo com coerência. Podemos dizer: “Se 2 + 2 = 5, então 5 – 2 = 2”. Tal afirmação é racional e está correta. 2 + 2 = 5 é o pressuposto do qual deriva a conclusão 5 – 2 = 2. Acontece neste caso de a base do raciocino não ser verdadeira, resultando em uma conclusão que também não o é. Mas chamo atenção para a partícula “se” localizada no início da afirmação. Ela confere o caráter condicional que valida o raciocínio. De fato, se 2 + 2 fosse 5, pela simples transposição de uma das parcelas da soma para o outro lado da igualdade concluiríamos que 5 – 2 = 2. O único problema é que o fundamento que serve de base não é verdadeiro. Observamos então que a tal partícula “se”, ou seja, o caráter condicional da afirmação, é o que confere a ela racionalidade. A partícula “se” está implícita em toda conclusão racional, isto é, todo pressuposto se apresenta como uma condição, uma hipótese, e portanto, toda conclusão que advém dele é condicional, só é verdadeira caso sua base também o seja. Conclusões racionais só podem constituir verdades a princípio. Isso é válido mesmo para os pressupostos mais óbvios. 2 + 2 = 4, ao mesmo tempo em que pode ser a conclusão de um raciocínio anterior, pode também ser o pressuposto para se chegar a outra conclusão; e não importa o quão óbvia para nós seja a veracidade desta afirmação de base, ela continua sendo uma hipótese.

Vimos então que o pressuposto é o fundamento que diz respeito às construções racionais, e que este é caracterizado pelo caráter questionável. Mas quando o pressuposto deixa de ser encarado como uma possibilidade, ele transforma-se em outro tipo de fundamento, de natureza oposta, o dogma. O dogma é um pressuposto considerado tão fundamental, tão necessário, que se acredita não ter cabimento questioná-lo. Para essa base, a partícula “se” deixa de existir. Só ele pode nos fornecer raciocínios do tipo “2 + 2 = 5, então 5 – 2 = 2”. Tal raciocínio também depende de uma lógica interna que atue fazendo a transição do dogma para a sua conclusão, mas não podemos dizer que este veículo seja a razão. Apoiar-se em uma afirmação que se apresenta como uma certeza, que não aceita que se levante a hipótese dela estar errada, não é racional. O elo que diz respeito ao dogma chamamos então de dogmatismo, sendo este o pólo oposto à razão.

O dogma é um pressuposto que não é honesto consigo mesmo, apresentando-se como uma verdade fundamental. O dogmatismo é a aplicação de uma lógica que não tem compromisso com a verdade, mas com a validação incondicional do pressuposto e da conclusão. Observamos a partir disso que uma característica imprescindível da razão é a sua honestidade intelectual. A razão deve estar sempre disposta a admitir os equívocos e os pontos fracos de seus pressupostos e conclusões. Dessa forma, uma conclusão absurdamente improvável, como a existência do papai Noel, pode ser racional, desde que admita que é absurdamente improvável. Tal admissão é contrária ao que se entende por dogma. Portanto, se este assumir a sua natureza de dogma, se confessar que sua postura tem como objetivo escapar da fragilidade, se disser publicamente que de fato é um princípio questionável, perde a sua sacralidade. Ele automaticamente se transforma em um pressuposto. A partir de então, as conclusões que ele sustenta se tornam menos convincentes, mas se tornam mais próximas da verdade, mesmo que esse caminho para a verdade passe pela aniquilação delas.

É compreensível que o senso comum não faça distinção entre pressuposto e dogma. Ambos são conceitos da mesma natureza, que só assumem posturas opostas em sua forma de apresentação. As pessoas tendem sempre a preferir o conforto da certeza. As boas respostas, para elas, são as que se resumem a “sim ou não”. A possibilidade, a dúvida, é vista como uma fraqueza, uma falta de fibra em definir um posicionamento. Por vezes isso pode ser verdade, mas em muitas situações a dúvida é preferível. É comum nos depararmos em nosso cotidiano com perguntas como “Você acredita em vida extraterrestre?”. A grande maioria das pessoas se preocupa em dar uma resposta do tipo “sim ou não”. Tanto as respostas quanto a própria pergunta não percebem, naturalmente, que a questão não se trata de opinião pessoal, de fé, mas sim de que argumentos podemos reunir a favor de um lado e de outro. A conclusão deve ser imparcial, e não baseada no “achismo” de cada um. Ao fornecerem respostas simplistas como no exemplo em que propus, as pessoas estão proferindo dogmas. Estão assumindo como verdadeira, ou provavelmente verdadeira, uma conclusão sem fundamento, baseada apenas em alguma intuição pessoal. Esse raciocínio peca por falta de honestidade intelectual.

O preconceito, já usado aqui como ilustração, é um bom exemplo de dogmatismo. Costuma-se pensar que o que o define como tal são as generalizações, mas estas não seriam preconceituosas se fossem verdadeiras. Logo, é o dogma que o caracteriza. É a insistência em não se dobrar, em não aceitar-se como equivocado diante do conjunto de evidências que nos proporciona a realidade. E da mesma forma que o dogma, o preconceito também deixa de existir caso admita que é apenas preconceito.

Analisemos também a natureza das conclusões proporcionadas pela razão e pelo dogmatismo. Já foi colocado o caráter condicional das conclusões racionais, atributo esse que não existe, ou se manifesta com fraqueza nas conclusões dogmáticas. A partir deste fenômeno, chamamos as conclusões racionais de convicções e as conclusões dogmáticas de certezas. Mas qual a diferença prática entre elas? Primeiramente, a convicção tende a ser um sentimento mais brando que a certeza, mais disposto com a tolerância. Estar convicto significa estar convencido de algo, ter sido persuadido pela racionalidade aplicada pelos pressupostos. Sendo assim, a convicção está sempre dependente da racionalidade. Nenhuma conclusão é eterna, todas são passíveis de serem transformadas ou mesmo derrubadas. Estar convicto de algo é sentir-se seguro para assumir um posicionamento com a quantidade de informações que se possui. Existe a possibilidade de se estar errado? Lógico que sim. Toda convicção é baseada em pressupostos e portanto é suscetível a falhas. Estar convicto pressupõe admitir sempre a possibilidade de se estar errado, mesmo que as chances sejam muito pequenas; admitir de verdade, não só da boca pra fora. Pressupõe também estar disposto a mudar de opinião, a se converter tantas vezes quanto se achar que é certo. O verdadeiro convicto é aquele capaz de reconhecer que está errado e se orgulhar de mudar de opinião. É verdade que estar errado propriamente não é algo satisfatório, mas reconhecer o erro e dobrar a si mesmo para corrigi-lo é um ato de nobreza, de sabedoria. A mudança de um posicionamento para outro, a respeito de uma questão qualquer, se dirigida pela razão, por uma reflexão sensata, carrega consigo alguma positividade. Tende-se a passar de um estágio de menos sabedoria para um de mais sabedoria, ainda que o movimento inverso também seja possível.

A razão anda de mãos dadas com o senso-crítico. Questionar, colocar a prova, não se satisfazer com o senso comum ou com respostas evasivas, são características do que é racional. O dogmatismo, até certo ponto, também pode se munir de um pouco de senso crítico e questionar a suas conclusões que, apesar de serem pouco flexíveis, possuem ainda alguma fragilidade. No entanto, a dúvida geralmente termina antes de encostar-se no dogma. Se seguisse adiante, automaticamente o dogma estaria sendo rompido e encarado como um pressuposto. Dessa forma, os únicos questionamentos que vemos partir do indivíduo dogmático são no sentido de validar o que ele já acredita, ao contrário da razão, que busca sempre desconstruir as verdades concebidas. As reflexões que se dirigem ao dogma já admitem a intenção declarada de prová-lo verdadeiro, e as que se dirigem a conclusão a de reformulá-la para proteger o dogma, adaptando-o a necessidade. A razão também age protegendo os seus pressupostos até certo ponto, mas seu compromisso com a verdade a impede de persistir neles após a demonstração de fraqueza.

É importante ressaltar que estamos tratando aqui a razão e o dogmatismo como entidades ideais. Não devemos nos esquecer que os indivíduos que se encaixam em um ou outro perfil são seres humanos, tão diversos e complexos quanto à natureza e a cultura humana os permite. Como foi colocado no início desse texto, o homem não é essencialmente racional, mas possui o dom da razão. Isso equivale a afirmar a existência de uma dualidade dentro dos indivíduos. Razão e dogmatismo, pressuposto e dogma, convicção e certeza, esses pares de oposição se encontram em conflito dentro de todo ser humano. Você pode ser um cientista, um físico que busca compreender o universo através da racionalidade, mas pode ser extremamente dogmático em seu posicionamento político ou em seus preconceitos. Até mesmo o mais racional dos homens tem as suas certezas e até mesmo o mais dogmático tem os seus pontos de dúvida. A ciência é racional, a fé é dogmática; mas tanto o cientista abraça o dogma em algum momento quanto o religioso enxerga com racionalidade. Quantos não foram os cientistas que se recusaram a abandonar a teoria que defendiam ao se deparar com resultados que a contrariavam e quantos não foram os homens de fé que tiveram um momento de dúvida diante da injustiça que vemos no mundo? Não cometamos o erro dogmático de rotular pessoas indiscriminadamente.

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