sábado, 10 de julho de 2010

Lembranças camponesas: repressão, sofrimento, perplexidade e medo - Regina Novaes

O texto trabalhado é intitulado “Lembranças camponesas: repressão, sofrimento, perplexidade e medo”. É de autoria da antropóloga Regina Novaes, professora de pós-graduação da UFRJ. Ela é pesquisadora do CNPq e autoridade na área de infância e juventude, embora não haja relação com o tema desse trabalho.

O trabalho realizado pela autora se propõe a analisar a construção da memória social entre os camponeses do nordeste brasileiro e a influência que a ditadura militar teve sobre essa memória. Segundo a autora, a memória social é seletiva pois é resultado de disputas entre pessoas, grupos e segmentos sociais. Quando tentamos fazer uma narração sobre um acontecimento anterior, nós selecionamos eventos e imagens referentes ao acontecido e tentamos construir uma lógica que relacione esses elementos, quase como criando uma linha cronológica de causa e efeito, que não necessariamente existe na prática. O desenrolar da história geralmente se dá por um jogo conflituoso de interesses e forças sociais.

Os estudos antropológicos como esse se valem da memória coletiva como ferramenta de trabalho. Ao antropólogo cabe desvendar porque determinadas imagens e eventos recebem uma atenção maior do povo, qual a sua importância simbólica dessas imagens no processo de construção de identidade do grupo, e assim compreender como as narrativas são socialmente construídas.

Assim, a autora escolhe um caso que forneça material que permita a ela refletir sobre essas questões. Ela retoma as Ligas Camponesas no Nordeste, que era um movimento social em busca de terra e direitos de cidadania que foi fortemente reprimido durante a ditadura militar.

Foram tomados como fonte pela autora jornais, entrevistas e um filme sobre o tema chamado “Cabra marcado para morrer”, direção de Eduardo Coutinho, 1981.


A invenção histórica do camponês brasileiro

O texto se refere à construção histórica do camponês porque a palavra “camponês” adquiriu um sentido particular no vocabulário brasileiro. Esse termo foi inserido no Brasil pelas esquerdas que buscavam, com isso, reunir todos os trabalhadores rurais sob uma mesma bandeira, pois antes havia uma série de termos que designavam grupos restritos como morador, colono, matuto, caboclo, lavrador, etc. O termo camponês permitia que essas pessoas se identificassem como membros de um mesmo grupo, como semelhantes.

Já em 1950, a palavra “camponês” era sinônimo de militante político das áreas rurais. Quando se falava em camponês, automaticamente se pensava em um indivíduo ligado a movimentos de esquerda, que lutava por reforma agrária, como o MST, por exemplo. Tanto que “camponês” acabou se tornando um título usado antes do nome dos militantes. Com isso, podemos observar como uma circunstância histórica e social, com conflitos políticos e econômicos serve de terreno para a construção de uma identidade social, pois, com esse ato, eles incorporavam a noção de identidade grupal dentro da de identidade individual. Não só o indivíduo fazia parte do grupo camponês como o grupo camponês fazia parte do que era o indivíduo. Com isso, o grupo conseguia o espírito de coesão e de fraternidade que era o objetivo das esquerdas ao introduzir esse termo.

“O fenômeno em questão foi construído, sobretudo, a partir de um par de oposição complementar: de um lado, aqueles que se auto-reconheciam como camponeses e de outro, o que denominavam genericamente como o latifúndio. Ou seja, como toda identidade social, a identidade camponesa se construiu de forma relacional. O que se opõe ao camponês (nós) é o latifúndio (eles).” (pag 234, Regina Novaes)

Importante ressaltar que a expressão latifúndio também tinha um significado que ia além do geralmente atribuído. Em geral esse termo se refere a uma grande quantidade de terra concentrada nas mãos de uma minoria, mas naquele contexto, a palavra latifúndio representava tudo ao que os camponeses se opunham. Latifúndio representava também a distribuição desigual de terra, mas não só isso. Representava a exploração dos patrões e toda a ordem social que empurrava os camponeses para uma posição inferior. E a expressão latifúndio tinha a mesma intenção que a “camponês”, no que diz respeito a unir diversos tipos de explorações que atingiam grupos diferentes sob a forma de uma exploração única que fosse comum a todos os trabalhadores.

Inicialmente a organização dos trabalhadores nas ligas camponesas provocou uma reação violenta e indignada por parte dos patrões, que acostumados com a submissão dos trabalhadores, não aceitavam a repentina perda de poder. Os camponeses se apoiavam na própria lei para recorrer ao Estado e limitar o poder dos patrões. Assim eles começaram a processar os patrões e a fiscalizar as ações destes. Em virtude disso, houve muitos relatos de pistoleiros contratados para matar os camponeses que de alguma forma desafiaram a autoridade dos patrões.

Uma prática interessante das Ligas camponesas era colocar um chocalho de boi pendurado no pescoço das pessoas. Esse ato tinha um significado simbólico que fazia o camponês lembrar constantemente da sua condição de explorado. Isso reforçava a idéia de que eles eram tratados como gado, explorados como animais, e não como seres humanos. Essa comparação com o gado invoca também a lembrança do “voto de cabresto” que existia já na República Oligárquica, que expressava a dominação política por parte dos patrões.

Com o golpe militar de 1964, as Ligas Camponesas foram desmanchadas e o termo “camponês” foi censurado. A mídia e as pessoas passaram a usar eufemismos como agricultores de baixa renda ou trabalhadores rurais, o que mostra que o governo militar reconheceu a existência dessa identidade social. Para entender como durante muitos anos permaneceu esse silêncio sobre as Ligas é preciso entender três fatores, de ordem econômica, política e associativa.
Dimensão econômica

Quanto ao fator de dimensão econômica, cabe fazermos uma análise marxista sobre ele. Logo após o golpe de 1964, os usineiros e fornecedores do Nordeste entraram em uma acirrada competição pelo mercado interno com os seus pares do Sul. Para oferecer produtos com preços mais competitivos e conseguir manter-se na cena econômica, os produtores nordestinos deram início aquilo que Marx chamaria de “achatamento da classe trabalhadora”. As despesas com mão de obra representavam 70% dos custos de produção da atividade açucareira. Foi preciso então promover demissões, aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores e burlar de qualquer forma a legislação trabalhista já existente. Tudo para reduzir a taxa de capital variável, aumentando o lucro. O resultado foi a expulsão de muitos trabalhadores e o empobrecimento dos que permaneceram.

Isso se relaciona com o silêncio das Ligas camponesas pelo sentimento de que após os movimentos de resistência terem começado a situação do campesinato só piorou. Eles guardavam lembranças de uma época passada quando, apesar da exploração dos patrões, gozavam de estabilidade. Uma época situada antes das Ligas. Para os camponeses ficou a sensação de que lutar contra os patrões só havia gerado mais violência e piorado ainda mais a situação em que se encontravam. As Ligas acabaram se tornando impopulares entre os próprios camponeses.

Dimensão política

“Após o golpe de 1964, entre os trabalhadores e os donos das terras se fez presente o Estado. O governo Castelo Branco, ao mesmo tempo em que reprimiu violentamente o movimento ‘camponês’, também se apropriou da bandeira de luta que politicamente o unificava: a reforma agrária.” (p 240, Regina Novaes) O governo de Castelo Branco incorporou reivindicações dos trabalhadores e promulgou o Estatuto da Terra, que continha medidas de desapropriação, posse e uso da terra, tributação, cadastramento de imóveis, preservação de reserva, crédito, comercialização, assistência técnica, mecanização e implementos agrícolas. Assim, o governo tornou-se um tutor para os camponeses. Ao tempo que reprimiam os movimentos e forneciam o que os camponeses queriam, os trabalhadores tiveram seus ânimos acalmados.

No entanto, a atuação dos camponeses não desapareceu por completo. As Ligas podiam ter sido desmanchadas, mas os sindicatos continuavam funcionando, ainda que sob intervenções e vigilâncias. Eles fizeram o máximo possível para firmar nas leis o seu direito de existir, evitando ao máximo possível criar atritos com o governo militar.



Dimensão associativa

Como já foi dito, nos anos que se seguiram ao golpe de 64 muitos trabalhadores foram obrigados a deixar as suas propriedades para habitar as “pontas de rua”. Com isso, atribuiu-se as Ligas o medo de perder as terras. “Rapidamente se expandiram verdadeiros povoados nas ‘beiras da pista’, sobre as terras públicas, ao longo das principais rodovias do estado.” (pag 242, Regina Novaes)

Interessante observar o nome que esses povoados adquiriam. Um deles foi denominado “Rabo da Besta”. Existem duas explicações possíveis para esse nome. Em uma delas, a besta representa o latifúndio, e o povoado, a sua obra. Mas há quem tenha dito que a besta fazia referência aos falsos profetas, que seriam os políticos comunistas que durante a época das Ligas vieram pregar por lá, e após o golpe de 64 simplesmente os abandonaram.

Outros dois povoados foram chamados respectivamente de Cuba e Nova Cuba. Aí, novamente, há duas versões sobre a origem do nome. Uns diziam que o nome teria sido dado em alusão à ilha socialista onde há moradia para todos, uma vez que as terras ali eram públicas. Outros dizem que os povoados foram batizados pelos patrões de forma sarcástica, escarnecendo da condição miserável dos barracos improvisados.

Esse cenário de misérias e estigmatizações tornou os sindicatos impopulares, assim como ocorreu antes com as Ligas camponesas. Mais uma vez as lutas não haviam produzido bons frutos.


Abertura política

O processo de abertura política se iniciou em 1974, pelas mãos do presidente Ernesto Geisel. “Tal como aconteceu em outras situações históricas de totalitarismo, o silêncio imposto não produziu esquecimento” (pag 244, Regina Novaes).

No campo, a abertura veio acompanhada de uma eclosão de conflitos pela posse da terra. Isso aconteceu porque, apesar de o governo militar ter adotado medidas que favorecessem os camponeses, eles não trabalharam no sentido de resolver os conflitos que motivavam as Ligas. Pelo contrário, a medida do milagre econômico, que fornecia crédito fácil permitiu a modernização da agricultura o que criava uma grande desigualdade em relação aos pequenos produtores que acabavam perdendo as suas terras. Além disso, surgiu o fenômeno da especulação fundiária, quando uma terra era comprada apenas com a intenção de ser revendida por um preço mais elevado posteriormente, não sendo assim, produtiva. Nesse momento, as antigas lembranças quase perdidas começaram a ser resgatadas para alimentar a memória coletiva sobre as Ligas camponesas.

Nesse ponto, surgiram relatos de camponeses que foram enterrados no chão, deixando só a cabeça de fora, para passar com o trator por cima logo em seguida. Camponeses presos passaram por todo o tipo de tortura física e psicológica.

Cabra marcado para morrer

Em 1964, dias após o golpe militar, nos jornais de Pernambuco podia-se ler uma notícia que associava os camponeses a conspirações comunistas e fazia referência a um filme chamado “Marcados para Morrer”. O filme ensinava os camponeses a agir de forma violenta e a sangue frio. Porém, 20 anos depois, o mesmo jornal foi obrigado a noticiar o lançamento do filme “Cabra Marcado para Morrer, que contava a história das Ligas camponesas pelo ponto de vista dos camponeses.

Esse filme havia se iniciado antes do golpe militar, e foi interrompido assim que esse ocorreu. Apenas em 1980 as filmagens foram retomadas.

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